As festas de San Fermin, em Pamplona, são tão míticas como concorridas. Na construção do mito ocupa um lugar central o romance Fiesta, de Ernest Hemingway, um grande romance do século XX.
Decorrem na primeira metade de Julho, duram uma semana e há muito que fazem parte da iconografia universal. Nas ruas estreitas da velha capital de Navarra, cheias de homens e mulheres vestidos de branco com lenços vermelhos ao pescoço, são lançados os touros que, pouco depois, hão-de ser lidados na praça da cidade. Há quase sempre feridos depois de cada correria, por vezes mortos. Mas no dia seguinte, no ano seguinte, as ruas voltarão a estar cheias. De muitos espanhóis e de um número crescente de americanos que aqui vêm procurar o perfume de outros tempos, um perfume que anteviram nas páginas de Fiesta, o grande romance de Hemingway, publicado em 1927.
A novela do escritor norte-americano, que como quase todas as suas obras tinha uma forte componente autobiográfica, tem conseguido resistir ao tempo porque, como escreveu Jorge de Sena, tradutor da obra para português, é um “documento imperecível de uma época e de um agrupamento humano, mas como autêntica obra de arte, escrita com a mais profunda e devastadora humanidade”.
E, no entanto, a sua história é simples, como também notou Jorge de Sena: “Meia dúzia de expatriados (escritores medíocres e, uma lady mais ou menos prostituta, quase todos sempre ocupados in fornication and drink), a vida de “cafés” em Paris e as festas de São Firmino em Pamplona – uma grande e extraordinária obra clássica da literatura norte-americana e um dos mais belos romances do nosso tempo? Pois é verdade.”
Com a sua escrita directa, seca, que muitos descreveram como jornalística, Hemingway descreve em Fiesta uma destas loucas corridas à frente dos touros. Hoje há muito mais gente, muito mais turistas e muito mais folclore, mas há uma parte do espírito que o escritor captou nestes breves parágrafos que se mantém intacto.
El chupinazo - San Fermín |
Fui apertado contra as tábuas. Entre as duas vedações, a Polícia ia enxotando o povo. A passo ou às corridinhas iam todos enfiando para a arena. Depois, começou a vir gente a correr. Um bêbedo escorregou e caiu. Dois polícias pegaram nele e atiraram-no por cima da vedação. A turba já vinha correndo a valer, houve um grande clamor na multidão, e, metendo a cabeça pelas tábuas, vi os touros saírem da rua para o extenso corredor. Vinham muito depressa e a apanhar a multidão. Nesse mesmo instante, outro bêbedo disparou da vedação com uma blusa nas mãos. Queria capear os touros. Os dois polícias atiraram-se, agarraram-no pela gola, um deu-lhe com o bastão na cabeça, e arrastaram-no para a vedação e ficaram colados a ela, ao passarem o resto da multidão e os touros. Era tanta a gente que corria adiante dos touros que a massa se comprimiu e abrandou a marcha ao atravessar a porta para a arena, e, quando os touros chegaram, galopando juntos, pesados e enlameados, com os cornos a dar a dar, um que ia à frente apanhou pelas costas um homem da multidão correndo, e levantou-o ao ar. Os braços do homem estavam ao longo do corpo, a cabeça descaiu quando o chifre entrou, e o touro levantou-o e depois deixou-o cair. O touro reparou noutro homem a correr à sua frente, mas o homem desapareceu na multidão, e a multidão passara o portão e entrara na arena com os touros atrás. A porta vermelha da praça fechou-se, a multidão dos balcões exteriores apertava-se por entre a dos de dentro, houve um clamor e depois outro.
O homem que fora corneado jazia de bruços na lama espezinhada. Pessoas marinharam pela vedação, e não pude vê-lo mais, porque era compacta a multidão à volta. De dentro da praça vinham aclamações. Cada clamor significava que um touro avançava para a multidão. Podia saber-se pela intensidade dos berros a gravidade da coisa que estava acontecendo. Subiu então o morteiro que significava terem as chocas levado os touros da arena para o touril. Deixei a vedação e fiz-me de volta à cidade.
Na cidade fui ao café para tomar uma segunda chávena e umas torradas com manteiga. Os criados varriam o café e limpavam as mesas. Um veio saber o que eu queria.
- Aconteceu alguma coisa no encierro?
- Não vi nada. Um homem foi gravemente colhido.
- Onde?
- Aqui – e levei a mão ao meio das costas, e a outra ao peito, onde o corno deveria ter saído. O criado abanou a cabeça e limpou com o seu pano as migalhas da mesa.
- Gravemente colhido – disse ele. – Tudo por desporto. Tudo por gosto.
Foi-se embora e voltou com a cafeteira e a leiteira de longas pegas. Serviu o leite e o café. Saíam de longos bicos em dois fios para a grande chávena. O criado abanou a cabeça.
- Gravemente colhido pelas costas – repetiu. Pousou as cafeteiras na mesa e sentou-se numa das cadeiras. Uma grande cornada. Tudo pelo gozo. Só por gozo. Que lhe parece?
- Não sei.
- Aí está. Tudo por gozo. Gozo, entende?
- Não é aficionado?
- Eu? Que são os touros? Animais. Animais bravos. – Levantou-se e levou a mão às costas. – Mesmo nas costas. Uma cornada nas costas. Por gozo… está a ver.
Abanou a cabeça e afastou-se levando as cafeteiras. Dois homens iam passando na rua. O criado berrou-lhes. Estavam muito circunspectos. Um abanou a cabeça e respondeu:
- Muerto!
O criado fez que sim com a cabeça. Os dois homens seguiram. Iam a qualquer sítio. O criado voltou à minha mesa.
- Ouviu? Muerto. Morto. Está morto. Atravessado por Corno. Por uma manhã de gozo. Es muy flamengo.
- Saiu-se mal.
- Eu não me saio – respondeu o criado. – Que não vejo gozo nisso.
Mais tarde, nesse dia, soubemos que o homem que morrera se chamava Vicente
Girones, e viera das proximidades de Tafalia. No dia seguinte, no jornal, vinha que ele tinha vinte e oito anos, uma herdade, mulher e dois filhos. Mesmo,depois de casado, continuava a vir à fiesta todos os anos. No dia seguinte, a mulher veio de Tafalia para velar o corpo, e no outro dia houve exéquias na Igreja de San Fermín, e o caixão foi levado à estação por membros da sociedade dançante e bebente de Tafalla.
Girones, e viera das proximidades de Tafalia. No dia seguinte, no jornal, vinha que ele tinha vinte e oito anos, uma herdade, mulher e dois filhos. Mesmo,depois de casado, continuava a vir à fiesta todos os anos. No dia seguinte, a mulher veio de Tafalia para velar o corpo, e no outro dia houve exéquias na Igreja de San Fermín, e o caixão foi levado à estação por membros da sociedade dançante e bebente de Tafalla.
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